A vida tão madura, sisuda, cuida para que tudo seja como deve ser. Estabelece metas, recria a glória e o fracasso. São os planos de Deus, os dos outros, os nossos e a habilidade para conciliá-los. Tudo isso em jogo sempre. Entusiastas das causas sociais que somos, vamos cumprindo nossos papéis, para que nada saia do controle. É assim que funciona. Ora prazeroso, ora sacal, mas real. Qualquer tontura é por excesso de lucidez. Em alguns raros momentos, breves hiatos no dia a dia servem de descanso, quando podemos nos dar o luxo da ausência para visitar um esconderijo e recarregar as energias. De onde voltamos seguros da validade desse processo criativo da vida. Pode ser uma foto, música, cheiro, qualquer coisa. Cada um sabe os caminhos dos seus portais do tempo. O meu é um cuco. Não imaginava tamanha relíquia na parede da minha sala, mas ele, testemunha de tantos momentos bonitos, está aqui, atraindo meu olhar cada vez que passo. Por mais que o veja, ainda sinto a sensação infantil do frio na barriga de quem contempla algo pela primeira vez.
      Difícil a surpresa nos dias de hoje, quando já conhecemos quase tudo, mas estes tesouros nos garantem um brilho no olhar. Não posso descrever o cuco nos termos técnicos dos conhecedores de arte, _adoraria saber _, mas a beleza artesanal na madeira de tom escuro com suas folhas de parreira e passarinho entalhados diz mais que termos e palavras. O valor afetivo mais que qualquer outra coisa. Num instante encontro-me décadas atrás, ainda criança, brincando com minha prima em sua casa. Minha querida tia, dona do cuco, sempre nos cercando de cuidados e atenção. Nessas tardes ficávamos ansiosas, esperando a hora em que o cuco abriria a porta da casinha de passarinho para sair e cantar. Minha tia vigiava o relógio e chamava a nossa atenção para os horários da aparição. Era incrível. Esse recanto da minha memória é encantado. Ano passado, quando soube que algumas lembranças de minha tia seriam deixadas com os mais queridos, não hesitei em pedir a minha prima o cuco para mim. Ela foi muito gentil em cedê-lo. Precisava vê-lo, como se, de alguma forma, através dele, pudesse vencer a barreira física, ou metafísica, e sentir tia Alda ainda mais presente.
Recebi minha relíquia embrulhada em plástico bolha para não danificar e guardei por uns dois meses, pois chegara a época de pintar a casa e eu o queria majestoso na parede. Não poderia submetê-lo à poeira, às surpresas de uma obra. No dia de desembrulhá-lo a expectativa do presente. Tão lindo quanto antes, mesmo sem funcionar já há um bom tempo.
Nada disso importava. Limpei-o e encaixei as correntes e os pendões, sem que isso atendesse ao seu funcionamento, apenas pendurados para que ficasse completo. Lindo, instantes depois de pendurado, surpreendentemente, a portinha se abre e o passarinho canta duas vezes. Olhares de espanto e contentamento. Talvez os mais céticos encontrem explicações diversas para o fenômeno, mas eu, que já aprendi a perceber o que não posso enxergar, tenho certeza de que foi um sinal. Minha tia havia gostado de ter um pouco dela em minha casa. É um grande orgulho pra mim.

 
 

 

 
 
 

Profª Sonia Corrêa Melgaço

 
 

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15/12/2012