A casa da minha infância tinha janelas abertas, cheiro de comida e de móveis antigos. Apesar de idosa, ostentava com graça suas marcas de tempo à sombra do primeiro edifício da rua. Lá eu encontrava muitos cantos onde ainda podia esconder-me da vista dos adultos, num espaço-tempo entre todos e a casa. Era essa existência paralela do ambiente meu cômodo favorito. Naquela idade eu já conseguia imaginar quantas outras histórias aquelas paredes poderiam contar e sentia orgulho disso, sabia que a casa era velha e sábia. As cabanas feitas de mesa, carros de cadeira e os tantos personagens que eu criava também já estavam sendo gravados na memória da casa. Para mim, parecia que aquela casa existia desde sempre, como tudo que nela havia, inclusive a família. Era como se toda aquela massa concreto, gente e coisas fosse uma coisa só, infinita, o conceito mais real de segurança e felicidade que já pude formular. Lá cabiam todos os meus sonhos. Tinha os bisavós à mesa cercados por todos nós, os cachorros lá fora, as crianças na rua e o mundo de coisas que eu, ainda durante as refeições, planejava fazer com o restante das horas do dia. Aquelas tardes eram repletas de tudo que eu precisava pra me sentir feliz, porque eu sabia inventar felicidade, era dono daquele mundo que podia dimensionar e imaginava todos tão felizes quanto eu era. Também acreditava no orgulho da casa em abrigar tantas gerações ao mesmo tempo. Naquele tempo estávamos todos juntos e não fazia idéia de como seria a família fragmentada, separada por distâncias que vão muito além dos muros, quando não podemos mais gritar para chamar o outro. Estava acostumado a ter sempre ao alcance as pessoas queridas. Só muito mais tarde viria a constatar o aspecto passageiro da existência da gente , _ e da casa _ , quando fomos obrigados a amargar as saudades dos bisavós, suportar suas ausências e continuar, como se não tivesse sido uma tragédia, como se fosse normal termos de dizer adeus. Ele primeiro, num hospital, ela, em casa, sob nossos pedidos para que ficasse. Foi quando a casa começou a cair. Embora não tivesse noção de que haviam sido derrubados os seus pilares, sentia a maior dor que já havia experimentado. Os anos seguintes foram passando mais depressa. A mesa, que antes tínhamos de desdobrar para que coubessem todos, passou a contar com poucos presentes e já não proporcionava as mesmas reuniões agradáveis, com assuntos que nunca terminavam. Até mesmo as pessoas pareciam ter descoberto que não se gostavam tanto assim, que poderiam viver à sua própria maneira, como se a casa não impusesse mais uma unidade sobre a família. Fomos crescendo, a casa foi esvaziando, mofando, mas continuava lá, sustentando o peso da idade com dificuldade. Começavam a denunciar seu fim próximo os reparos inacabáveis e a falta de serventia para nossa moradia. Afastamo-nos todos então. Família, casa, rua, vizinhos, sentimentos. Nunca mais voltei lá, acho que ninguém. Vendemos a casa e mais tarde vim a saber que fora demolida, que sobre os registros mais concretos de nossa história havia sido levantado um edifício. Pode ser que ali também tenha sido soterrado todo o amor que sentíamos uns pelos outros, mas eu espero que não. Para mim, resta da casa a lembrança dos meus melhores dias e a certeza de que é possível ser feliz em algum tempo de nossas vidas.

 
     
 
 

LUIZ  PAULO CORRÊA MELGAÇO

 
 

(Professor de Português, como sua tia-avó Alda C.M.Moreira)

 
 

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Angela Stefanelli de Moraes

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15/10/2014